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Stephen King, George Martin e essa coisa de sair do corpo...



     Caso a gente pare para ler dois dos mestres meio gênios – “Steve” King e George R. R. Martin – e nos debrucemos sobre duas de suas pérolas literárias (“O Iluminado” e “Uma Canção de Gelo e Fogo”, respectivamente), vamos nos deparar com Danny Torrance e Brandon Stark.

     O que é que há de especial neles? Bem, para dizer o mínimo e ir direto ao ponto: os dois “saem do corpo”!... Em contextos, por motivos e de formas diversas, ambos os personagens, vez por outra, dão um tempinho das coisas aqui da nossa crua realidade sensória e se vão para o que quer que haja para além da prisão de carne-sangue-ossos em que nos debatemos ao longo da vida.



     De Brandon Stark (e considerando-se que metade do mundo inteiro e praticamente todo o hemisfério ocidental já viu o “Game of Thrones” by HBO, Daniel Beniof e D. Weis), a gente sabe que após ficar paralítico e em estado de coma, por várias semanas, o garoto começa a ter sonhos em que se vê voando, sob as lições de um corvo que tem três olhos.



     De Danny Torrance (e considerando que muita gente nova não viu “O Iluminado”), transcrevo o primeiro trecho em que vemos do que a alma de do menino é capaz (capítulo, “Terra das Sombras” – a transcrição não é longa e está exatamente como a encontro no livro[2]):
“Franziu a testa, e suas mãos um pouco sujas cerraram-se sobre as calças de brim. Não fechou seus olhos – não era preciso –, mas apertou-os até virarem apenas fendas, imaginando a voz do pai, a voz de Jack, a voz de John Daniel Torrance, grave e constante, às vezes ardilosa de satisfação, ou ainda mais grave de raiva, ou então apenas se mantendo estável quando estava pensando. Pensando em. Pensando sobre. Pensando...
(pensando)
Danny suspirou silenciosamente e seu corpo caiu na calçada como se seus músculos tivessem sido desligados. Estava plenamente consciente; via a rua e o casalsinho passeando na calçada no outro lado, de mãos dadas, pois estavam
(apaixonados?)
tão felizes por estarem juntos naquele dia. Viu as folhas do outono caindo na sarjeta ao balançar do vento, cambalhotas amarelas de formatos irregulares. Viu a casa por onde passavam e viu o telhado coberto de
(telhas, acho que não vai haver problemas se estiver bem calafetado. é... estará tudo bem. aquele watson, deus, que figura. quem me dera ter um papel para ele na “PEÇA”. vou botar toda a miserável humanidade nela se eu não tiver cuidado. é... telhas. há pregos por lá? que merda, esqueci de perguntar. bem, são fáceis de conseguir. loja de ferragens de sidewinder. vespas. nesta época do ano estão acasalando. devo precisar de uma daquelas bombas contra insetos, caso haja alguma por lá quando retirar as telhas velhas. telhas novas. velhas.)[3]
telhas. Então era nisso que ele estava pensando. Conseguira o emprego e pensava em telhas. Danny não sabia quem era Watson, mas tudo o mais parecia suficientemente claro. E pode ser que chegue a ver um ninho de vespas. Tão certo quanto seu nome era
- Danny... Danniii...
Levantou os olhos e lá estava Tony, no final da rua, ao lado de uma placa de “Pare”, acenando. Danny, como sempre, sentiu uma calorosa explosão de prazer ao ver o velho amigo. Desta vez, parecia sentir também um pouco de medo, como se Tony tivesse vindo com alguma escuridão escondida atrás das costas. Um vidro de vespas que, quando soltas picariam profundamente.
Mas não havia discussão quanto à ida deles.
O menino escorregou ainda mais no meio-fio, as mãos escorregando relaxadamente pelas coxas e balançando abaixo da bacia. O queixo mergulhado no tórax. Houve então um puxão indolor quando parte dele se levantou e correu atrás de Tony escuridão adentro.
- Danny...
A escuridão foi invadida por um turbilhão de brancura. Um estrondoso som de tosse e sombras curvadas e torturadas que se decompuseram em pinheiros durante a noite, empurrados por um vendaval gigante. A neve dançava e girava. Neve por toda a parte.”



     Para quem tem “certa familiaridade com o tema”, é evidente que Stephen King está descrevendo o transe sonambúlico com o que, propositadamente, o personagem “Danny” sai do corpo e vai ao encontro de um espírito (“Houve então um puxão indolor quando parte dele se levantou e correu atrás de Tony escuridão a dentro”)...

     Parece absurdo para um materialista, não? Será?...

     Assim como Sócrates afirmava ter seu “gênio” imortal, seu daemon que o guiava e intuía do que fazer em circunstâncias mais difíceis[4], Danny Torrance também fruía de companhia tão “incomum” (embora quase todo pai e mãe já tenha visto seu filhinho a conversar com “o amigo invisível”...).

     Aonde quero chegar?... Simples: certas verdades são tão antigas e dificilmente negáveis que se impõem ao nosso consciente (seriam arquétipos ou componente do “inconsciente coletivo”, diria K. G. Jung?), caindo mesmo nos canais da criação artística.

     Nas pirâmides egípcias há hieróglifos que descrevem o processo do que também se chama “projeção da consciência” (o corpo adormecido, o espírito livre e distante dele e um laço – de que seria feito?... – a ligá-los mesmo na distância). João Evangelista começa seu Apocalipse se dizendo[5] arrebatado para fora do corpo (como o profeta Jeremias?). O Apóstolo Paulo de Tarso chega a descrever[6] o que chama de “corpo espiritual”... Santo Antônio de Pádua defendeu – fora do corpo – seu próprio pai, que estava sendo julgado em outra cidade, por homicídio; Santo Afonso de Liguori também é conhecido por aparições em espírito, assim como Maria de Agreda e São Francisco Xavier. Para não falar das visões de Dante Aligheri[7], a quem – estando o artista fora do corpo – guiam Virgílio e depois sua amada Eneida, por Inferno, Purgatório e Céu.

     Você me dirá, talvez: mas aí é coisa de santo!... De gênio artístico!... E eu lhe replicarei: e o caso de Wolfgang Von Goethe (o próprio...)!? Este escritor marcante relatou seu encontro com “o fantasma” de um amigo seu, que estava vivo[8], não morto, em outra cidade...

     Para os espíritas (que se pautam pela Codificação organizada por Allan Kardec), o espírito deixa o corpo carnal sempre que o contexto se mostra a tanto favorável (dada a intuição que possui, quanto à existência da dimensão extracorpórea e à sua condição de “centelha divina” pré-existente ao corpo físico – e sobrevivente á sua morte).

     Uma das mais evidentes provas de que tal fenômeno é verdadeiro são os sonhos, embora neles esteja talvez o mais complexo capítulo das experiências extrassensórias  (como bem sabem os que leram “A Interpretação dos Sonhos”[9], de Freud). Mas há também larga pesquisa científica (é sim: não se espante com a palavra) e vasta bibliografia sobre o tema; deixem-me citar alguns: Fragmentos Psicológicos Sobre A Loucura (de Leuret); There Is No Death (de Florence Marryat); A Alma Humana, seus Movimentos, suas Luzes (pelo Dr. H. Baraduc); Exteriorização da Sensibilidade (por Albert de Rochas); Anais das Ciências Psíquicas (pelo Dr., Paul Joire); O Sonambulismo Provocado (por Beaunis); Vida dos Filósofos da Antiguidade (por Fénelon); A Humanidade Póstuma (de Dassler); Os Milagres do Moderno Espiritualismo (de Alfred Russel Wallace); A Consciência Subliminal (de W. H. F. Myers, 1897); O Automatismo Psicológico (de Pierre Janet, p. 314); A Luz dos Mortos (de Cahagnet); Pesquisas sobre o Espiritismo (de William Crookes); História Geral da Igreja (pelo Barão Henrion, de Paris, em 1851); Elemente della Storia de Sommi Pontifici (por Guisepe de Novaes); A Alma É Imortal e O Espiritismo Perante A Ciência (ambos de Gabriel Delanne)...

     Não precisamos ir tão longe assim; procure em seu círculo de relações: é bastante provável que encontre alguém que lhe conte uma experiência ou duas, “estando eu fora de meu corpo”...







[1] Texto de 18 de novembro de 2016.
[2] “O Iluminado”, Ed. Objetiva, RJ, 12ª edição, pp. 39 e 40.
[3] Toda a transcrição e mais ainda este longo parágrafo tem frases iniciadas em minúsculas e outros “erros” de pontuação; na verdade, são os recursos com que Stephen King quer nos mostrar que é a mente de uma criança que está descrevendo o que se passa – e a mente de uma criança que ainda nem sabe ler!
[4] Confiramos E. Bonnemère (A Alma e suas manifestações através da história), Rossi e Gustianini (O Demônio de Sócrates) e G. Delanne (A Alma é Imortal).
[5] "Eu fui arrebatado no Espírito no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim uma grande voz, como de trombeta" (Apocalipse 1:10).
[6] 1ª Epístola aos Coríntios, capítulo 15, versículo 44.
[7] Na mundialmente conhecida e tão analisada/comentada “Divina Comédia”.
[8] Confiramos Psychische Studien, de março de 1897, apud Gabriel Delanne (“A Alma é Imortal”, 7ª edição, FEB, RJ, 1992, páginas 95 e 96).
[9]Grandes Livros - Discovery” (https://www.youtube.com/watch?v=vQxEk9-Sz-A).

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