"(. . .) mas o homem é representado somente como caído no mal mediante a sedução, portanto, não corrompido desde o fundamento (inclusive segundo a disposição primeira para o bem), mas susceptível ainda de um melhoramento, em contraste com um espírito sedutor, i.e., um ser a que não se pode imputar a tentação da carne como atenuante da sua culpa; e assim ao homem que, além de um coração corrupto, continua ainda a ter uma boa vontade, deixou-se a esperança de um retorno ao bem de que se desviara."[1]
O capítulo que encerra a
segunda temporada dos "Centavos de Terror"[2]
("Penny Dreadful") foi - como deveria ser - o ápice do tema de toda a
temporada: a culpa.
Ao longo dos capítulos, vemos
cada personagem ter de confrontar seus erros, suas falhas, as coisas mais
graves que fez. A um, haver libertado a besta interior que deveria conter e
assassinado dezenas; a outro, haver sacrificado o filho, em busca de
descobertas geográficas. A este, haver brincado com a vida e a morte alheias,
"substituindo-se a Deus" e trazendo à vida carnal quem já a deixara; àquele,
ter sido mercador de escravos; a outro, haver assassinado alguém, recorrendo a
poderes magnéticos que não deveria usar senão para a paz própria ou alheia...
Embora um gênio como Ariano
Suassuna tenha dito que o problema fundamental da filosofia e o único que
merece, de fato, sua atenção seja o problema do sofrimento/morte e sua
concordância com a existência de um Deus bom e justo, creio que o problema da
culpa também merece parte das nossas grandes reflexões.
Pela culpa matamos e nos
matamos (coisa que Durkhein tentou equacionar em seu "Do Suicídio"[3]); pela
culpa, desenvolvemos transtornos psíquicos e/ou comportamentais; pela culpa
perdemos a alegria de viver.
Já houve mesmo quem dissesse
que é a consciência coletiva da culpa pela crucificação, que faz com grande
parte da civilização terrena tenha adotado a fortíssima imagem de um homem
pregado em um madeiro, como símbolo da vinda de um Deus, a este plano carnal...
Nunca lhe pareceu paradoxal, o símbolo?... E, dentre os que advogam esta ideia,
há quem afirme também que, após sua redenção através da vivência dos
pressupostos da paz entre todas as nações e entre todos os indivíduos, a
humanidade afiliada ao Cristianismo adotará outro símbolo, para indicar sua fé
em Deus, através da vida de Jesus.
Mas há os que, como o Diabo de
Al Pacino, defendem que a culpa é apenas um saco de tijolos, que só precisamos
deixar cair por terra.
O fato é que uma das
características mais marcantes do ser humano é sua capacidade de formar juízo
ético sobre a própria conduta - apesar das escolas filosóficas, científicas
e/ou psicológicas que defendem a imperiosidade da abolição de qualquer
sentimento de culpa (postulando, por exemplo, que ele nasce da educação imposta
na infância). E que, depois deste juízo, sinta-se mais ou menos em paz consigo
mesmo, mais ou menos feliz, mais ou menos realizado como ser humano, mais ou
menos satisfeito consigo próprio.
Não há nenhuma etnia humana,
nenhuma criatura humana sadia, que - atingida uma idade de razão - não faça
juízos de valor sobre os próprio atos. À exceção dos psicopatas graves, a noção
de culpa compõe a psique de um ser humano sadio. Na "Sétima Arte",
seja na antítese "Batman versus Coringa"
(a culpa pela morte dos pais versus completa
ausência de sentimentos de culpa), seja na loucura do vilão de "Seven - Os
7 Pecados Capitais"), também é o herói quem é capaz de sentir culpa, nunca
o vilão. Até mesmo os santos carregavam as suas (leia as Confissões de Santo Agostinho, ou as de Teresa de Ávila ou preste atenção ao que diz Paulo
de Tarso: Pois o bem que quero, não faço, mas o mal que não quero, este
sim faço - citado, aqui, de memória[4]).
Em Penny Dreadful,
a busca das personagens principais é por redenção. Buscam resgatar a
consciência de culpa ajudando-se mutuamente, sacrificando-se pelos demais,
lutando contras demônios e, sobretudo, contra a própria natureza... Vivem -
recordando a citação inicial, de Kant - a
esperança de um retorno ao bem de que se desviaram.
Claro que você ou eu podemos
achar que é tudo uma grande bobagem, esta estória de culpa; que seja tudo fruto
de imposições das igrejas, resultados de educação repressora, de atavismos
biológicos arrimados na necessidade da sobrevivência do grupo etc.
Cada um de nós pode pensar o que quiser e é só em seus pensamentos que o ser
humano é totalmente livre.
[1] Carta aos Romanos, capítulo 7: " Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que
não quero fazer esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não
sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. Assim, encontro esta lei que
atua em mim: Quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim. No íntimo do
meu ser tenho prazer na Lei de Deus; mas vejo outra lei atuando nos membros do
meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da
lei do pecado que atua em meus membros. Miserável homem que eu sou! Quem me
libertará do corpo sujeito a esta morte?"
[3] Kant, Immanuel, A Religião nos Limites da Simples Razão,
Coleção Textos Filosóficos, Edições 70, Lisboa, Portugal, p. 50.
[4] Não é uma tradução; O título se refere aos Penny Dreadfuls,
publicações de ficção e terror que eram vendidas na Inglaterra do século 19. Por serem histórias que custavam um
centavo, tinham como apelido "centavos do terror" (Cf.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Penny_Dreadful).
Fantástico o texto. Apesar das diferenças entre os personagens e suas missões sobrenaturais, romãnticas, religiosas, etc., a forma que eles se relacionam consigo mesmos e com os outros é o que moveu toda a história. Não tive como fugir desse sentimento também, culpa. O tanto que me envolvi e o mesmo tanto que superestimei alguns personagens me arrastou para essa sensação "credo" errado. Obrigada. ❤️❤️
ResponderExcluir