Este
texto tem revelações sobre a trama - não o leia, se ainda for ver o filme.
Por estes dias, retornei ao
rico "A Estrada"[2]
e, apesar de muito sono, ainda me pude encantar com o filme (nascido de livro
bem premiado) forte e triste.
Não vou me repetir (no que está
em texto anterior desta obra). Abordo, aqui, uma fala do inesquecível Ariano
Suassuna, em que ele diz, literalmente o seguinte[3]:
"Você
acredita em Deus...
Acredito!
Como é
isso?
Eu não conseguiria conviver com essa visão
amarga, dura e sangrenta do mundo. Então, ou existe Deus ou então a vida não
tem sentido nenhum. Bastaria a morte, pra tirar qualquer sentido à existência,
não é? A gente vir pra cá... Olhe, o grande poeta popular Leandro Gomes de
Matos, meu conterrâneo, da Paraíba, ele escreveu três estrofes, três sextilhas,
o que eu acho q resume o problema filosófico mais grave da humanidade - resolve
não, formula, pelo menos. Camus (.
. .) tem um livro que ele começa
dizendo 'o único problema filosófico realmente sério é o do suicídio', tá
entendendo? Porque o suicídio é uma coisa muito grave. A pessoa avalia o mundo,
avalia ele mesmo e acha que não vale a pena. (.
. .) Mas, apesar de a frase ser
muito bonita, Camus, a meu ver, estava errado; o problema filosófico realmente
não é o do suicídio, o suicídio é apenas um aspecto do problema mais grave, que
é o problema do mal e do sofrimento humano."
"A
Estrada" tem muito momentos marcantes e traz muitas reflexões. A maior
delas, penso, é a maneira como se vê o mundo, a dor e o sofrimento - mesmo
Deus. No filme, temos basicamente três visões, num mesmo núcleo de personagens:
a do pai, a da mãe e a do filho.
O
pai (personagem de Vigo Mortensen), vê o que o mundo se tornou, mas pelo amor
ao filho, se mantém nele e tudo faz para sobreviver - tudo, não, porque se mantém
dentro de certos limites do que podemos chamar de moral cristã ou (se você
preferir uma saída pelo Direito Constitucional moderno) de "dignidade
humana": ele não mata nem rouba[4],
nem estupra, nem tortura.
A
mãe (persona de Charlize Theron), vê
o que o mundo se tornou, vê a si mesma e, como diz Ariano, chega à conclusão
que não vale a pena. Ela diz ao marido: "Eles vão nos encontrar... Vão me
estuprar, vão estuprar nosso filho e depois vão nos matar"... Deste ponto,
ela escolhe o suicídio e se mata com uma frieza impressionante - anos depois,
lembrando-se do fato, o pai diz a si mesmo que "a frieza do ato foi o seu
presente" para ele...
Vamos
parar um pouco aqui, nas visões da mãe e no problema do suicídio, para recordar
que, de Émile Durkheim[5]
("O Suicídio") a Leon Denis ("O Problema do Ser, do Destino e da
Dor"), passando por Sören Kierkegaard (que sacramentou a fantástica frase
"Sinto, logo sou" e autor dos singulares "O Desespero
Humano" e "O Conceito de Angústia") e outros tantos, o suicídio
segue sendo dos temas mais duros sobre os quais pensar (com o distanciamento
dos acadêmicos) ou decidir (quando é a gente que está "no olho do
furacão"). Nem me atrevo a discutir o problema, com profundidade, por aqui;
somente destacar o tema e - para não "sair sem dizer nada" -
argumentar que mesmo a crença em Deus ou a própria certeza na imortalidade da
alma não são garantias de que algum de nós, sob delicadas circunstâncias (um
prédio em chamas, uma doença terminal, uma humilhação espalhada pela rede
mundial de computadores) não vá escolher a porta do suicídio... Espero que não,
que "nunca-jamais-em-tempo-algum" ("Por quê"?! Por que hoje
posso dizer que sei - quase como a mesma ousadia com que Jung disse que sabia
que Deus existia! - que o suicídio, longe de resolver-nos o problema, lança-nos
em outro, muito mais demorado e de dificílima solução, que nos vai exigir da
alma séculos, normalmente, até que nos restabeleçamos como ser humano, como
individualidade anímica a existir em paz, consigo mesma).
Vamos
avançar a para a terceira visão.
O
menino (personagem de Kodi Smit-McPhee) é o oposto da visão da mãe e o suprassumo da
visão do pai. Ele vê o que o mundo se tornou, vê a si mesmo mas não fica aí. Embora
sua mente entenda (porque seu pai é duro e firme, ao lhe ensinar) a necessidade
de ser cruel, em um mundo pleno de caos e brutalidade, o garoto, com o passar
do tempo, começa a se contrapor à visão cruenta e fria do pai, a respeito do
sofrimento alheio. O menino quer, i. ex.,
dividir os mantimentos com um velho, que ele e o pai encontram, na estrada; ele
quer que o pai devolva as roupas e dê alguma comida mesmo ao homem que,
instantes antes, roubara tudo deles, enquanto o pai estava longe e o filho
dormia profundamente... O menino é, essencial e profundamente, bom, seja sob o
conceito budista, socrático, cristão, islâmico ou espírita.
Mais
o que isso: o menino está disposto a correr os riscos de ser bom! Sim, ser bom,
agir corretamente tem seus riscos e você e eu que estamos numa grande cidade
sabemos muito bem (embora não seja "privilégio" das metrópoles). Que
boa pessoa - aquela cotidianamente boa - nunca foi enganada ou experienciou
abusos às suas gentilezas ou predisposição a ajudar? Os estadunidenses até têm
seu ditado "toda boa ação tem sempre uma punição"... Ainda assim, há
milhares e milhões que insistem em ser bons, contra a mais sadia expectativa[6]...
Vou
ficando por aqui, com a pergunta: que visão de mundo você prefere?... Como eu e
você lidaríamos com esse cenário? Qual é, afinal, nossa visão sobre as coisas?
Não nos enganemos, amigo: eu e você só saberemos mesmo do que somos feitos,
quando estivermos em situações extremas - pobreza, doença etc...
E
este mundo é mesmo tão duro, que o poeta citado por Ariano - com cujas palavras
encerramos este texto - discorre:
"Se
eu conversasse com Deus, iria Lhe perguntar, por que é que sofremos tanto,
quando viemos pra cá? Que dívida é essa que o homem tem que morrer pra pagar?...
Perguntaria também como é que Ele é feito, que não dorme, que não come e assim
vive satisfeito. Por que foi que Ele não fez a gente do mesmo jeito?... Por que
existem uns felizes e outros, que sofrem tanto, nascidos do mesmo jeito,
criados no mesmo canto? Quem foi temperar o choro e acabou salgando o
pranto?..."
Muita
paz.
[1] Domingo, 2 de agosto
de 2015. O texto vai dedicado à minha amada, "por obra e graça" de
quem revi o filme (que ela locou, para o fim de semana). Roteiro de Joe Penhall
e direção de J. Hillcoat. O elenco é de primeira: Viggo Mortensen, Charlize
Theron, Robert Duvall, Guy Pearce e o garoto Kodi Smit-McPhee, estupendo.
[2] No Brasil, veiculado
com tradução literal (o que nem sempre acontece - por exemplo, "Mystic
River" virou "Sobre Meninos e Lobos") para "The Road".
O filme vem do livro de mesmo nome, vencedor do prestigiado Pulitzer e de
autoria de Cormac McKarthy, também autor do laureado "No Country for an
Old Men", que veio para nossos cinema como "Onde os Fracos não têm
vez". Confira http://www.theroad-movie.com/
[3] Trata-se do trecho de
uma entrevista
dada ao "Canal Brasil" (https://www.youtube.com/watch?v=Beq961fusnk).
Em
itálico, as respostas e falas de Ariano.
[4] Lembre: roubo tem
violência e/ou grave ameaça; furto, não.
[5] Que tem uma frase
estupenda: " A religião não é somente um sistema de ideias, ela é antes de tudo um
sistema de forças (cf. Les Formes
élémentaires de la vie religieuse, 1912)
[6] Conta-se que Madre Teresa de Calcutá, certa vez teve sua
casa de benemerência invadida e roubada, por um bando de criminosos. Na saída,
um deles, um deles estacou à sua frente; a mulher tomou seu rosto entre as mãos
e sentenciou: Deus o abençoe! Diante
do espanto do criminoso, a Madre esclareceu: Se Deus te ama, como posso odiar-te?...
Como já dizia...( eu mesma) rsrsr.
ResponderExcluirEm tudo vejo a mão de Deus tocando em todas as direções e alcança quem tem coragem e determinação de tocá-la. Saí e entrei de diversas situações em um mesmo tempo. Como? Sei lá, acho que Deus tem um GPS e eu sempre vou em seu caminho. Sucesso!
Laura, um dos filósofos de q mais gosto é Kant [dele, acho q o mais gosto é "A Religião nos Limites da Simples Razão"] e, para ele, o absoluto só pode ser encontrado em Deus; tudo mais seria relativo. Sobre "os planos de Deus", penso que um fator a considerar - e muitas vezes não comentado - é que Deus está fora do tempo, além dele e, para Ele, tudo é presente, não passado, nem futuro: presente! Daí, a onisciência e o "escrever certo, por linhas tortas"... Daí a gente sair de certas enrascadas, sem saber como saiu... Abração, amiga.
ExcluirFeliz análise meu caro amigo. Já fui mais "o pai" e hoje sou mais "o filho". Nunca fui "a mãe" más vejo que num caos como o do filme, ou num quem sabe "The Walking Dead" zumbi da vida não haverá nada mais cômodo que dar fim a vida física e sem esperança.
ResponderExcluirNesse mundo desse altor onde estava o Deus daqueles seres presos no porão para servirem de alimento aos outros na casa? Porque Deus não agiu na conciência daqueles assassinos? Não defendendo ateísmo nem nada más se é pra pensar taí sua levantada de bola. Agora corta aí pra gente.
Rênio, também não compartilho muito da decisão da mãe, mas a entendo: nas situações de total ruptura da harmonia social, são as mulheres as primeiras vítimas, principalmente em relação à sua liberdade sexual, ao seu corpo - vejamos o que acontece, quase todo dia, nos países africanos em estado de guerra civil...
Excluir"Onde estava Deus" é uma pergunta difícil de responder, quando é feita por uma vítima da brutalidade dos homens... Sem considerar a possibilidade, por exemplo, das vidas sucessivas, não há muito como harmonizar a bondade, a sabedoria e a justiça divinas com "o problema do mal e do sofrimento humanos" (como dito por Ariano Suassuna), ou "o problema do ser, do destino e da dor" (como dito por Leon Denis)...
Abração, meu grande amigo.