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"Bença, pai?"... Aos pais, na vida e na morte.[1]


Terça-feira, 3 de março de 2015. Duas horas e meia da tarde. Tristeza; pesar. Mas esperança, felicidade também...
Não sei dizer se, em todo o país, no Brasil como um todo, a figura paterna tem a primazia e a recebe a honradez que lhe é habitual, no interior, nas plagas nordestinas, sobretudo no ambiente inóspito da caatinga (ou nas cidades de clima mais desafiador, ainda que não inteiramente dominadas por este bioma). Quer me parecer (assim, de longe, sem informação acadêmica sociológica precisa) que o nordestino genuíno tem um amor diferenciado pelos pais. Claro que posso estar enganado. Se até Roger Waters dedicou grande parte da emoção e dos dramas de "The Wall" à saudade do pai, morto na guerra...
Das obras mais conhecidas de Luiz Gonzaga, "Respeita Januário" tem todo um brilho especial, toda uma poesia delicada, dedicada à figura paterna, à honra e ao caráter do homem que começou tudo, antes de "Lua", antes do baião, antes de Asa Branca[2]. Depois de haver feito as pazes com "Gonzaguinha", o "Velho Lua" cantaria para ele: "Luizim! Não se esqueça de seu avô! Foi ele quem começou tudo!"
Gonzaga, ele mesmo, que seria uma figura paterna enorme para tanta gente, começando por Dominguinhos e terminando pelo cearense Waldonis, a quem deu a primeira sanfona de valor, de grande qualidade.
Quando conta, no canto, seu retorno ao lar pela madrugada, anos depois de haver partido de casa, Luiz Gonzaga fala que, quando seu pai abriu a janela para o ver, sentiu partir dele "aquele cheiro meu", o cheiro de seu pai...
Quando foi a última vez, na sua vida, que você sentiu de perto, de bem perto e propositadamente, o cheiro de seu pai, hein? Quando foi a última vez que lhe pediu a benção, o famoso "bença, pai?" de todo dia, ainda comum (creio) na maior parte do nordeste brasileiro? Pois não deixe para muito depois, meu irmão, minha irmã... Pode ser mesmo a última vez na carne, no mundo dos vivos.

Sábado passado, desencarnou meu grande irmão José Alves Filho, pai de Karla, minha esposa, depois de lutar contra um câncer que se lhe abateu fulminante, tomando-lhe os pulmões em poucas semanas, embora os exames de prevenção tradicionais, que "J" realizava semestralmente.
Malgrado eu tenha - por conta de minhas crenças e fé - segurado absolutamente todas as lágrimas (mas foi por bem pouco, em vários momentos), senti sua partida muito mais do que imaginei que sentiria. Em grande parte, perdi um amigão, uma pessoa muito querida, contra quem joguei incontáveis duelos de sinuca (perdendo muito mais do que vencendo, a propósito); em pequena parte, perdi nele um pouco de figura paterna, mesmo que possa parecer estranho para você que me lê. Ao contrário do que se poderia esperar, ele foi a primeira pessoa da família a abrir a casa para mim, a confiar em mim, com generosidade e atenção.

Apesar de minha certeza absoluta (expressão redundante, aliás) na imortalidade da alma, na sobrevivência do espírito, a partida de "J" foi, sob o ponto de vista emocional, muito rápida para toda a família. Até três meses antes, "J" estava dirigindo o próprio carro, pagando as próprias contas e as de outros, fazendo a feira mensal de toda a casa, jogando bola, sinuca, nadando na piscina da área de lazer que montara no quintal de casa; pouco tempo depois, partia deste mundo carnal de padecimentos vários e alegrias limitadas, esta vida por vezes tão dura, amarga, atormentada e sangrenta (como disse Ariano Suassuna[3]). Eita doença danada essa... Não tem a menor consideração por nós, não quer saber se já estamos prontos ou não, não pergunta a opinião de ninguém, nem de quem vai, nem de fica...
"J" deixa, que eu saiba, um pequeno sonho sem realizar, o grande "J" planejava, havia anos, dar uma sanfona de qualidade (coisa que custa alguns milhares de reais!) a seu irmão Nogueira, autodidata em sanfona e violão, cujo talento eu pude testemunhar e admirar (aliás, eu posso escrever cem livros, mas morro de inveja de quem consegue aprender a tocar sanfona por si mesmo!). A mim (logo depois que ganhou de sua filha um violão profissional de primeira linha e lindo, em preto e creme), deu-me, ano passado, o que era seu violão pessoal e com o qual tento me entender, desde então.
A cultura da cidade, a vida que vem pela telinha ou pela telona, os costumes do sul, talvez também nos empurram para uma relação mais fria para com pais e mães; o costume de pedir a benção passa a ser uma das maiores vítimas de tudo isto. Hoje, é muito raro ver, em público, um filho pedir que um ou os dois pais o abençoem. Lá em casa, todos os cinco ainda pedem a benção, ainda beijam pai e mãe (mesmo Sueli e Gorete, que já têm seus próprios netos). Para nós, isto não mudou nem mudará, acredito.
Este capítulo neste despretensioso livro vai dedicado a ele, "J" e à figura paterna nordestina... Naturalmente, vai para meu pai, também, José Inácio de Freitas, um dos maiores homens que conheci nesta vida.
Encerro com o que Ariano disse (e referi acima):
"Se eu conversasse com Deus, iria Lhe perguntar, por que é que sofremos tanto, quando viemos pra cá? Que dívida é essa que o homem tem que morrer pra pagar?... Perguntaria também como é que Ele é feito, que não dorme, que não come e assim vive satisfeito. Por que foi que Ele não fez a gente do mesmo jeito?... Por que existem uns felizes e outros, que sofrem tanto, nascidos do mesmo jeito, criados no mesmo canto? Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?..."






[1] Em honra (e memória) de José Alves Filho e José Inácio de Freitas.
[2] Por estes dias, vendo "Conexão Roberto Dávila", fiquei sabendo que Paulinho da Viola considera "Asa Branca" uma das duas músicas mais importantes da história da MPB, ao lado de "Carinhoso".
[3] Entrevista ao Canal Brasil (confira https://www.youtube.com/watch?v=Beq961fusnk).

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