Manet - "O Velho Músico" |
— Por
que nunca tocamos canções de amor, mestre?
Este
pequeno bardo ingênuo... Uma pergunta tão desnecessária quanto infantil –
pensou o velho, abrindo o estojo e acomodando o alaúde, já se preparando para
se erguer e deixar o pequeno palco. A mente divagou novamente: Quantas vezes já me perguntou tal coisa?!...
Não desejava
responder; não o faria. Jovem demais para
tragédias de amor e coisas melosas assim... Para dissabores excessivos, por
conta de semelhantes bobagens...
— O
que significa “dissabores”, mestre?
Olhou espantado
para o menino, que dera para ler-lhe os pensamentos, nos últimos meses. Por uma
ou duas vezes, sentira-se alvejado por um sorriso matreiro do menino, quando
este o flagrara caçoando – em pensamentos – dos ébrios das tavernas ou dos
pseudo cavaleiros ajaezados e parvos.
— Pare
de ler meus pensamentos!
O menino sorriu,
matreiro.
— Leia
os do taverneiro, para saber se nos pagará e quando! Leia os dos senhores ricos
que passarem pela porta e me diga o que tocar, para fazê-los chorar e derramar
lágrimas de prata e cobre, em nossa algibeira!
— Por
isto perguntei, mestre. Um senhor roliço, ali no canto, deseja muito que o
senhor cante “A Estrada da Donzela”, mas não quer erguer a voz nem chamar
atenção...
O aprendiz virou
o rosto para um lado do salão e esticou o lábio inferior, mas estacou, a meio
caminho do gesto.
— Ah!...
Já se foi... Lamentou-se o garoto.
— Não
importa! Não cantaria nada sobre donzelas, estradas verdejantes ou amores
perdidos...
— Por
que, mestre? Por que não cantamos as de amor?...
— Canções
de amor, você diz... Se pensar melhor, menino, vai ver se o que nossos
espectadores chamam de amor vem mesmo a ser essa mesma coisa divinal, como você
a considera...
E na memória do
bardo desfilaram todas as lágrimas quentes e frias, de desprezo, desgraça,
desvario, culpa, pesar e mesmo de ódio e reverberaram todos os relatos que
ouvira da boca dos assim considerados e comumente denominados “amantes”
(relatos nem sempre feitos diretamente a ele, deveria confessar... Mas a
atenção de um bardo é como um gato novo e imaturo, em tudo se imiscuindo).
Quantas crueldades, quantas tragédias, suicídios, assassínios, traições e
desesperanças cometidas em nome dessa divindade malsã chamada Paixão e a quem seus adoradores e aduladores
vestiam no manto indefectível do deus verdadeiro, do amor sadio e honrado... Amor.
Quando sua mente
começava a divagar mais especificamente numa das tragédias mais marcantes que
conhecera, a voz do menino o trouxe de volta ao ambiente:
— Por
que nunca cantamos as de amor, mestre?
O olhar se lhe
fixou novamente na taverna, nos circunstantes, no palco e, finalmente, no rosto
do garotinho:
— Porque
nunca foram de amor, meu filho...
E pôs-se a
executar uma melodia qualquer, que passasse longe das dores impunemente autoinfligidas
pelos seres humanos.
O menino olhou-o
ainda por um tempo a mais, tentando devassar-lhe a mente, mas nada havia ali
que ele pudesse compreender, apenas uma espécie de vazio sem palavras, numa
velada e diminuta tristeza, um pesar que nem era por ele mesmo, uma tristeza
sem nome...
Caravaggio - "Os Músicos" |
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