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“Inveja. Culpa. Ganância. E paixão.” (O Anel dos Nibelungos e Aristóteles).



“O Anel dos Nibelungos” é tragédia, na precisa acepção do termo. Não há final feliz, nem poesia de contos de fadas inocentes.
As paixões humanas duelam com os fracos apelos da ética, da piedade, da resignação. Mas em vão... “Com efeito, a paixão transforma todos os homens em irracionais.”[1] “A dissolução agrada a muito mais gente do que uma conduta regrada.”[2]
Que males teríamos evitado, com mais temperança, humildade, reflexão, renúncia? Como seria nossa vida, sem os impensados momentos de fúria? Por que a riqueza[3] nos é tão importante? Por que nos azafamamos tanto e por tanto tempo, para consegui-la e preservá-la?... Aristóteles afirmava mesmo o dano que os excessivamente ricos representavam a República:
“Os da primeira classe, favorecidos demais pela natureza ou pela fortuna, poderosos, ricos e rodeados de amigos ou de protegidos, não querem nem sabem obedecer. Desde a infância, são tomados por essa arrogância doméstica e a tal ponto corrompidos pelo luxo que desdenham na escola até mesmo escutar o professor.”[4]
Sólon (citado por Aristóteles[5]) asseverava: “O homem quer acumular sem fim e sem medida”.O atual Dalai Lama pondera, entre sorrisos, que o ser humano é mais confuso dos animais: está sempre fora do seu tempo, com a alma ou no futuro, ou no passado. Perde juventude, na conquista do dinheiro; depois, perde o dinheiro, buscando recuperar a juventude...

Nos Nibelungos, o mais feliz dos personagens – coisa que só ficamos sabendo a final de tudo – é um simples ferreiro, velho e sereno. Vive em paz, morre em paz, na crença dos deuses antigos, que descreve ao filho adotivo, enquanto lhe aponta as estrelas “coruscantes no zimbório”[6], numa noite qualquer, sem aparente grande significação. E para ele (ao contrário do que ocorre para alguns dos protagonistas) os deuses não se fizeram ver nem ouvir e, mesmo sem este amparo direto, o velho homem passa pela vida carregando o fardo da virtude, um “fardo suave”, um “jugo leve”[7]... O velho, qual Immanuel Kant, espanta-se com o céu estrelado sobre ele e com a lei moral, dentro dele. E assim vive; assim morre.
Quanto aos outros personagens, quase todos são como a grande maioria dos viventes deste nosso mundo, às voltas com nossos desejos, impulsos, ânsias, ciúmes, ganâncias, egoísmos... Como os quatro quintos[8] da humanidade atual, tentam um equilíbrio entre suas paixões e virtudes, “amando a quem os ama e odiando a quem os odeia”[9], buscando um tipo de felicidade “colcha de retalhos”, onde às vezes nem mais é possível saber a que essência pertence esta ou aquela fração. Mas “é impossível separar a felicidade da virtude”...[10]
"Que motivos eu teria para matar um homem que fez tanto bem?" – pergunta um rei, a uma rainha, em momento decisivo da trama.
"Inveja! Culpa! Ganância!" – replica a dama da nobreza[11]. Aristóteles admoestaria:
“Todos vemos que não é pelos bens exteriores que se adquirem e  conservam as virtudes, mas sim que é pelos talentos e virtudes que se adquirem e conservam os bens exteriores e que, quer se faça consistir a felicidade no prazer ou na virtude, ou em ambos, os que têm inteligência e costumes excelentes a alcançam mais facilmente com uma fortuna medíocre do que os que têm mais do que o necessário e carecem dos outros bens. {§} Por pouco que atentemos a isto, a razão basta para nos convencer. Os bens exteriores são apenas instrumentos úteis, conformes a seu fim, mas semelhantes a qualquer outro instrumento, cujo excesso necessariamente é nocivo ou, pelo menos, inútil a quem os manipula. Os bens da alma, pelo contrário, não são apenas honestos, mas também úteis, e quanto mais excederem a medida comum, mais terão utilidade. {§} Em geral, as melhores disposições e maneiras de ser seguem entre si as mesmas proporções e desproporções que seus sujeitos; se, portanto, a alma, por sua natureza e relativamente a nós, tem um valor muito diferente do corpo e dos bens, seus bons costumes ultrapassam igualmente os dessas outras substâncias. Tais bens só são desejáveis por ela, e todo homem os deseja para a alma, e não a alma para eles. Consideremos, pois, como certo que a cada um cabe uma felicidade proporcional à virtude e à prudência que tiver, e na medida em que age conformemente a elas. Exemplo e prova disto é Deus, que é feliz não por algum bem exterior, mas por si mesmo e por seus atributos essenciais.”[12]

O Anel dos Nibelungos continua sendo encenado, nos recônditos das cortes atuais, nos bastidores dos governos dominantes da Terra, mas também nos recintos de incontáveis casas e ruas deste diminuto orbe. Continuamos, em alto grau, ignorando a voz da razão, a voz dos mortos, ambas a nos dizer isto não é para ti, isto te fará mal, isto te fará sofrer. O tempo do aprendizado é de cada um de nós.




[1] Aristóteles, em “A Política”, tópico “A Superioridade da Lei”.
[2] Aristóteles, em “A Política”, tópico “Apreciação dos Diversos Tipos de Democracia”.
[3] Aristóteles, sobre  dinheiro, em “A Política”: “No entanto, o dinheiro é somente uma ficção e todo seu valor é o que a lei lhe dá. Mudando a opinião dos que fazem uso dele, não terá mais nenhuma  utilidade e não proporcionará mais a menor das coisas necessárias à vida. Mesmo se se tiver uma enorme quantidade de dinheiro, não se encontrarão, por meio dele, os mais indispensáveis alimentos. Ora, é absurdo chamar 'riquezas' um metal cuja abundância não impede de se morrer de fome; prova disso é o Midas da fábula, a quem o céu, para puni-lo de sua insaciável avareza, concedera o dom de transformar em ouro tudo o que tocasse.”
[4]Em “A Política”, tópico “Importância e excelência da classe média”.
[5]Em “A Política”.
[6]Como diria Tagore...
[7] Referência a um dos ensinamentos de Jesus Cristo.
[8]Talvez sejam mais, talvez sejam menos.
[9]“Que fazeis de mais, se assim também procedem os fariseus e publicanos?”, perguntar-lhes-ia o rabi Galileu, talvez.
[10]Aristóteles, em “A Política”, tópico “A Especialização das Funções”.
[11] José Ortega Y Gasset, sobre a nobreza (em “A Rebelião das Massas”, edição eletrônica : Ed Ridendo Castigat Mores, pp. 67 e 68): “É irritante a degeneração sofrida no vocabulário usual por uma palavra tão inspiradora como 'nobreza'. Porque ao significar para muitos "nobreza de sangue" hereditária, converte-se em algo parecido aos direitos comuns, numa qualidade estática e passiva, que se recebe e transmite como uma coisa inerte. Mas o sentido próprio, o étimo do vocábulo "nobreza" é essencialmente dinâmico. Nobre significa o "conhecido", entende-se o conhecido de todo o mundo, o famoso, que se deu a conhecer sobressaindo sobre a massa anônima. Implica um esforço insólito que motivou a fama. Nobre, pois, equivale a esforçado ou excelente. (…) Há, de qualquer modo, certa contradição na transferência da nobreza, desde o nobre inicial a seus sucessores. Mais lógicos os chineses, invertem a ordem da transmissão, e não é o pai quem enobrece o filho, mas o filho quem, ao conseguir a nobreza, a comunica a seus antepassados, destacando com o seu esforço sua estirpe humilde. {§} Para mim, nobreza é sinônimo de vida esforçada, posta sempre a superar-se a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência. Desta maneira, a vida nobre fica contraposta à vida vulgar e inerte, que, estaticamente, se reclui a si mesma, condenada à perpétua imanência, caso uma força exterior não a obrigue a sair de si.”
[12]Em “A Política”, tópico “As Condições da Felicidade Particular”.

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