A excelência do perdão está se mostrando cada
dia mais, mediante incontáveis experiências individuais e/ou coletivas,
práticas de educação, de ressocialização de presos e egressos, de harmonização
e recuperação emocional e psíquica das vítimas de violência, da reconciliação
entre comunidades de longa data beligerantes, entre países, entre povos...
Como instrumento incomparável para a
pacificação dos sentimentos e equilíbrio da psique, o perdão mereceu atenção de
praticamente todas as grandes mentes que passaram por este mundo. De Lao Tsé a
Teresa de Calcutá, de Buda a Mandela, de Jesus a Gandhi...
Na seara dos filósofos, singular é a abordagem
de Hannah Arendt, que afirma ser imprescindível o perdão e que ele está
presente mesmo no equilíbrio entre as nações, entre Estados soberanos. Ela,
judia... Teria todos os motivos para advogar causa oposta e postular, em
primeiro lugar, a imprescindibilidade da punição a quem cometeu crimes contra a
humanidade.
Em "A Condição Humana", ela afirma:
"Se não fôssemos perdoados, eximidos das
consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim
dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para
sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de
feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço.
. . .
Sob esse aspecto, o
perdão é o exato oposto da vingança, que atua como re-ação a uma ofensa
inicial, com a qual, longe de porem fim às consequências da primeira falta,
todos permanecem enredados no processo, permitindo que a reação em cadeia
contida em cada ação siga livremente seu curso. Ao contrário da vingança, que é
a reação natural e automática à transgressão e que, devido à irreversibilidade
do processo da ação, pode ser esperada e até calculada, o ato de perdoar jamais
pode ser previsto; é a única reação que atua de modo inesperado e, embora seja
reação, conserva algo do caráter original da ação. Em outras palavras, o perdão
é a única reação que não re-age apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem
ser condicionado pelo ato que a provocou e de cujas consequências liberta, por
conseguinte, tanto o que perdoa quanto o que é perdoado (...)."
Pois bem: para
mim, a maior experiência coletiva da era moderna, a respeito do perdão, foram
as muitas e muitas reuniões da Comissão
para a Verdade e Reconciliação, lideradas pela alma nobre de Desmond Tutu,
na África do Sul pós Apartheid.
Nelas, vítimas e
algozes se defrontaram, narrando, confessando suas dores e seus crimes, em
encontros que marcaram a face daquele país com o selo da concórdia, para que
surgisse a nova nação, um novo povo, pelo menos suas sementes, ao menos seus
alicerces. Em encontros cujas gravações de áudio/vídeo eu o desafio você a ver,
sem sentir uma profunda emoção ou sem chorar...
O que os
realizadores dos encontros entre vítimas e criminosos, nas iniciativas de
Justiça Restaurativa, promovem entre poucas pessoas, Desmond Tutu e a Comissão
realizaram para centenas, milhares em todo o país. E nelas, ódios que
perdurariam por toda uma vida ou além dela... Rancores que levariam à loucura,
à vingança, à brutalidade imensa da desforra, foram
"transubstanciados" em perdão, a coisa imprevisível e incondicionada
de que nos falou Arendt...
A meu ver não há,
nos últimos duzentos anos, nenhuma experiência tão exitosa de reconciliação
entre toda uma coletividade de milhões de opressores, e toda uma coletividade
de milhões de oprimidos e vitimados. Nem as iniciativas de Gandhi, na Índia,
tiveram o mesmo condão, porque houve tantas comoções que Índia e Nepal tiveram
de apartar fronteiras, após a libertação ante a Coroa Britânica.
Talvez poucos
Nobel da Paz tenham caído em tão boas e merecedoras mãos, como as de Desmond
Tutu.
Perfeito.
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