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O Velho - uma insuspeita surpresa no Dia Nacional do Escritor.


Ontem, Dia Nacional do Escritor, entrei numa grande livraria de shopping, com a intenção apenas de matar um pouco o tempo e acompanhar minha esposa, que queria ver uns livros de Direito do Trabalho {karma?... Sem dúvida - eu voltei as costas ao Direito, recentemente (ela, não) para tentar viver as coisas que só se consegue tentando ser escritor, no Brasil}.
Parei na estante principal, no meio do hall de entrada, para ver se encontrava livros de fantasia nacional (sim, isto mesmo) ou de algum dos jovens autores com quem tenho tido a grata alegria de trocar um ou outro dedo de prosa virtual (Ah, as benesses das novas tecnologias...).
Mas o Dia dos Pais se aproxima e, na estante principal (ao menos é como a via e vejo, já que fica bem à entrada), só havia "leitura adulta" (quando é que a gente vai para com esta infeliz diferenciação?...). Ficamos eu e um velho mirando a estante - velho, mas "hígido", como se diz por aí, querendo ser elegante (e, para mim, velho é elogio, embora a Rachel de Queiroz tenha sacramentado o seu "a velhice é uma merda!", há muitos anos).
Como minha esposa tinha já "sumido pela direita", no rumo da sessão de livros jurídicos, resolvi fazer um comentário qualquer, só para não ficar com cara de paisagem, ignorando meu colega de estante. Saquei da pilha horizontal uma belíssima edição de "Os Miseráveis" (se você está aqui lendo, obviamente sabe quem foi Victor Hugo): capa dura, em tons de verde e cinza; um primor. Olhei para o velho e disse o meu:
- Que encadernação linda, hein?
E ele:
- É mesmo! Dever ser uns...
Eu atalhei logo:
- Ah... Aqui é brincadeira para uns duzentos reais!
E ele:
- Ou trezentos!
- É, até pode ser, já que o Dostoievski tá de cem, aqui, ó...
E apontei para "Os Irmãos Karamazov", em capa dura, divididos em dois volumes, a cem reais cada um.
Ele olhou os livros e sorriu. Surgiu um hiato, ameaçando matar a conversa e eu resolvi lhe dar andamento:
- A verdade é que a gente vai morrer lendo esses caras...
"Essas caras", perdoem-me pela blasfêmia, foi como me referi aos escritores russos. Acreditam nisto?!... Nem eu. Que declaração absurda. Mas ele ignorou a minha deselegância e concordou:
- É mesmo.
Eu comentei que finalmente tinha iniciado a leitura de "Crime e Castigo", ao que ele replicou que já tinha lido este e mais "os outros". Seguindo o instinto milenar de tentar ser o macho alfa - mesmo em questões que não envolvem a posse e fruição de fêmeas ou território (neste caso, poderíamos dizer que estava em jogo o território cultural?) -, repliquei com Tchekhov e "A Estepe"... Para quê?! Meu interlocutor, o velho com quem eu iniciara uma prosa despretensiosa, destilou, daí para frente, um cabedal de cultura que me fez o queixo cair (mais pura verdade).
Sabe quem era o velho?... Ah, meu amigo... O velho era um escritor, formado em Direito, Administração e Economia, sendo este último diploma adquirido na Rússia, quando foi exilado após o Golpe Militar de 1964. O velho era somente alguém fluente em russo, que lera os escritores das estepes no original (e que me disse que as traduções atuais do mercado são, de fato, boas - já que eu o provoquei com o ditado do pessoal do Lácio: traduttore traditore).
Mais do que isso. O velho era um homem que estava casado pela terceira vez e cujas duas primeiras esposas morreram em pequenas tragédias (uma delas, a primeira, morrera ao dar à luz). O velho era um homem que tivera três filhos, dois agora mortos, um deles falecido quando em missão humanitária junto aos "Médicos Sem Fronteiras". O velho era um homem com dois livros já escritos - e um terceiro a caminho -, a respeito de seus anos de exílio. Era um homem que fugira do Brasil e da ditadura em um caminhão frigorífico, envolto em velhos cobertores, durante vários dias... O velho era quem estava me dando uma colher de chá, com aquela prosa despretensiosa.
Com mais humildade, pude beber direito do que ele me estava oferecendo, recolhendo o que podia, de sua alma, no pouco tempo daquele encontro.
Logo a esposa dele reclamou sua presença, via telefone celular. Sabem o que ele replicou, ao atender: "Eu tô aqui na livraria, com um amigo novo que encontrei!... Se eu não estiver aqui, quando você chegar, tô nos bancos que ficam em frente"...
A conversa caminhou mais um pouco e minha esposa apareceu. Despedimo-nos, com promessas de nos procurarmos pelas redes sociais. Ninguém pediu números de telefone ou contas de e-mail. Acho que os dois ficaram esperando um pelo outro, mas ninguém deu o passo adiante...

Se algum dia o vir, novamente, vou lhe dar um abraço fraterno e dizer que terminei Dostoievski.

Comentários

  1. Interessante rsrsrs, ( perdoe-me os risos) para mim que terminei de ler " O maior milagre do mundo", vejo uma feliz coincidência com um personagem do livro que me fez abrir os olhos no momento em que já não via motivos mais para escrever, expressar-me de alguma maneira. Mas, como todas essas pessoas milagrosas e misteriosas surgem em nossa vidas.... sei lá! Prefiro sempre ver tudo isto como um bom sinal que tudo está melhorando!
    Um grande prazer Inácio! Continuarei a visitar seu blog. parabéns e sucesso!

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    1. É assim mesmo e é das melhores coisas que a vida nos traz.
      Valeu pela leitura, Laura. Abração.

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