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Belchior, R.I.P. {título original: "Para Yuri Viera, Camila Guerra, um certo cantor recluso e meus amigos do peito"}.

Nunca tinha prestado a devida atenção à música, apesar de a ter ouvido não sei quantas vezes, em tantos anos de vida. E agora me parece ouvir (sim, ele mesmo, ainda que um de ou todos nós duvidemos do que se conta dele, às vezes...) O galileu, aconselhando: ouça quem tem ouvidos de ouvir. Que coisa mais tosca, não? Dizer que "ouça quem tem ouvidos de ouvir"... E há outra função aos ouvidos, senão ouvir?!

Pois é, parece que eu ouvi a dita música uma pá de vezes, mas nunca com os ouvidos certos...

Não estou interessado em romances astrais... Sim, eu mesmo, Inácio, acredito em romances astrais (ou sei que existem?! Como Jung dizia que sabia que Deus existia?...), mas entendo o que o cara da música quer ou quis dizer (ainda quer? Tantos anos se passaram... Será que ele ainda é ele mesmo? Aquele que foi um dia? Quem de nós é ainda quem foi há vinte, trinta anos atrás?). Eu, a colega Camila e mais uma montanha de gente acreditamos em romances astrais e acho que ela e eu podemos muito bem ter visto um ou outro por aí, nas paragens onde se comentam as coisas da alma.

Mas para ele, o sujeito da música, não; ele não quer saber de romances astrais. Pra ele, a alucinação é suportar o dia a dia. E ele delira em experiências com coisas reais... O que me faz pensar (não, eu não usei nem uso alucinógenos - eu mesmo pasmo, por divagar para tão longe, agora) nas experiências que Luther King, Gandhi ou Teresa de Calcutá devem ter tido (verdadeiras "viagens") no contato com algumas das coisas mais reais que alguém pode escolher enfrentar (racismo, ditadura colonialista, miséria extrema, doenças altamente contagiosas e sistemas de casta...).

Aí, seguindo com a canção, a gente vê o cara falar de coisas que normalmente não se colocam numa canção. Começa a falar de pretos, pobres, mulheres sozinhas, estudantes etc., até chegar nas mulheres que vivem na e da noite (aquelas a quem quase todo mundo se refere com uma palavra que parece mesmo uma agressão e que a maior parte de nós ficaria constrangida em dizer na face de alguém: "prostituta"... Não parece uma palavra que se diz sempre acompanhada de uma bofetada humilhante, mesmo que mão e braço nem se mexam? Talvez por isto uma alma grande como a daquele mineiro controverso - que morreu num dia em que todo o Brasil estava feliz - se referisse a elas como "irmãs comprometidas com o comércio das energias sexuais"... Talvez por exagerar nas palavras o cara tenha conseguido escrever mais de 400 livros, sem sequer ter "curso superior"... Ah, eu sou fã do mineiro controverso, antes que você pense que não. Quando eu crescer, quero ser como ele...).


Aí ouvimos o autor falar de um cachorro e de moradores de rua (que ele classifica de humilhados do parque), em relação a quem a caridade (ou a onda do politicamente correto - você escolhe) hoje nos recomenda referir como "pessoas em situação de rua" (que é, afinal, como todo morador de rua começou sua estória de "sem teto": numa situação que o levou à rua - já se perguntou por que alguém vai pra rua?... Você acha que a resposta é sempre o uso de drogas? Se acha, está respondendo uma pergunta com outra: por que ele usou drogas, a ponto de ficar pelas ruas?... Digo a você, com alguma pouca autoridade no assunto: a pessoa em situação de rua carrega dramas maiores do que somente a dependência química...).


O autor continua, falando de suicídio (uma vontade oculta na alma dele? E na sua: você já quis se matar?), da noite, das pessoas dentro dela, da violência (você pensa, quando vai sair de casa, depois que escurece, que pode ser sua última noite no mundo carnal, no "mundo dos vivos, segundo a carne"?... Ninguém quer pensar nisto, não é? Eu também não penso. Saio, vou e volto sem pensar no assunto, exceto quando vou chegando próximo a um sinal fechado).
Este texto está se tornando uma verborragia? Perdoe-me; é a ligeira emoção de, pela primeira vez, ter prestado real atenção a esta canção que, hoje, é icônica para muita gente. Vamos voltar à música? Ela está "do meio para o fim".


Chegamos à solidão - sempre ela (quem foi que disse que "o homem está condenado a ser livre"? Acho que foi Sartre - será que, hoje, ele ainda é ateu? Será, afinal, que a morte é, como Sócrates aventou que poderia ser, uma longa noite sem sono? Ou será que é mesmo a terra da verdade e da luz, para quem viveu bem, ou da mentira e das sombras, para quem viveu de braços dados com o mal?...).

A solidão é das coisas mais medonhas ou mais atrativas. Quando você começa a viver a idade adulta e se sente um gênio incompreendido (ou um astro de rock ainda desconhecido!), muitas vezes só o que você quer é ficar sozinho, morar sozinho, viver sozinho; a solidão lhe parece um templo de paz, que lhe abre braços para uma realização pessoal superior... Quando você está velho, ou envelhecendo, a solidão é das coisas mais assustadoras que podem passar pela sua mente. Você não tem mais tanto tempo ("o Patrulheiro" está lhe alcançando, finalmente, diria o Stephen - o Hawking não, o outro); seus amigos começam a partir ou a morrer, você começa a frequentar mais assiduamente consultórios médicos e laboratórios de coletas e exames de fluidos; suas possibilidades de se aventurar por aí também começam a rarear, seus filhos estão crescidos e começam a deixar você (ainda que não queiram ) de lado, em prol da própria vida, afazeres, desejos, sonhos e ilusões... Ou apenas porque não querem dirigir, no fim de semana, para visitar você, apesar de tudo o que você fez por eles... "A solidão é fera, a solidão devora", disse um outro cara de músicas. Refletir sobre a solidão é uma viagem, mesmo... Quem a quer? Quase ninguém, por mais que o Einstein tenha dito que havia coisas que só sabia aquele que tivesse experienciado longamente a solidão. Eu tenho medo da solidão, da velhice, da morte... Você não?

Voltando à música (calma, estamos quase no fim - se é que você ainda está aí... Eu adoraria que estivesse - não por achar que meu texto lhe foi agradável a ponto de prender sua atenção, mas por saber que, se você chegou até aqui, deve gostar um pouco de mim, embora eu não me sinta nem me veja como um adulto carente).

O autor chega a dois policiais. Deve ter se interessado por eles pela mesma razão que o fez escrever a música: estão premidos pela realidade, enfrentando a guerra urbana mundial (que no Brasil mata mais de cinquenta mil pessoas por ano), sem tempo para pensar em coisas do oriente ou divagar sobre o que acontece para "além do véu de Ísis" (como diria o Souto Maior), sob pena de serem mortos sem mesmo saber de onde veio o tiro (como avisou o Herbert Viana).


Depois nos deparamos com profecias de terror, a reboque da Laranja Mecânica (já leu?... Já assistiu? É perturbador... Pior: é possível. Pior: é provável). Fez-me pensar no recente aviso de Stephen (o King não, o outro), sobre os perigos da Inteligência Artificial (veja só: já estamos dando maiúsculas a ela?!)...

A essas alturas da canção, parece que o autor da música é um "pessimista de carteirinha" (daqueles que nunca fundaram um clube em torno da bandeira, por achar que não daria certo), cético e perdido num mundo que não entende.


Aí, tudo muda! Como o George a nos gritar seu "lá vem o sol!" Porque, para terminar tudo, o cara da música resume o que (olhem só!) corre o risco de ser o sumo da filosofia de Lao Tsé, Buda e Jesus, dos poetas Gibran e Tagore, dos santos e dos mártires, lá no céu distante do seu amor incondicional por nós, que rastejamos pesadamente sobre a terra, em busca de nossa própria alma... O autor nos diz o que lhe interessa, afinal: amar e mudar as coisas me interessa mais.

O que me lembra - e agora é mesmo o fim, juro! - uma frase de Hilda Hilst (que tenho descoberto, pela trilha que passa pelo pensamento e palavras de Yuri Vieira): a verdadeira revolução é a santidade.

E terminamos...

Um abraço saudoso (como sentir saudades de quem não se conhece?) aos colegas de caminho (o caminho? Ora, escrever... Do início do vale, onde estou, eu os vejo lá para além do sopé da montanha, já subindo em ângulos de alto grau) Camila M. Guerra e Yuri Vieira. Que me perdoem a pequena ousadia de gostar de ambos (num gosto que é fraternidade gratuita - ou não, já que nos deram um bom bocado, aos que vamos bebendo do que eles já viveram e sabem), pelo pouco que deles sei e me desculpem pelas notas de pieguice que o texto deve conter... Mas é que o texto é dedicado a eles dois, Camila e Yuri. A eles e ao cara da música...
Abraços a vocês e ao Belchior.







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